1. Quando eu era um monandengue, calções pobres e sonhos de luxo, e isso foi em Angola, tinha dias em que ia para a varanda do aeroporto de Luanda ver os aviões levantar vôo. O barulho atordoava e a gasolina cheirava a vitória.
2. Queria ter asas e voar, mas aprendi: não é Ícaro quem quer e não é qualquer um que é Jardel para voar sobre os centrais.
3. Já vestia um fatinho executivo, o pescoço apertado por uma gravata e a cabeça atafulhada de excel e logística, quando, na SIC, apoiámos um documentário em que dois monandengues moçambicanos, iguaizinhos (ou desiguaizinhos?) ao meu “mim” do aeroporto de Luanda, passavam os dias no aeroporto de Maputo a ver aviões levantar e aterrar. Um deles explicou ao outro como é que era voar de avião: “Quando o avião sobe no ar, as pessoas desmaiam lá dentro, então! Viajam já desmaiadas e acordam quando o avião aterra.”
4. A primeira vez que viajei de avião – ou desmaiei, então – foi num Friendship da velha DTA, de Luanda ao Lubango. Desmaiei, sim: íamos no meio das nuvens de algodão doce, a terra era um chocolate cá em baixo, rios de chocolate líquido, uma fenda chamada Tundavala, aberta pela colher de um menino na quentíssima mousse angolana.
5. Lembro-me, lembro-me. Foi a primeira vez que sobrevoei a outra África. A janela de um Boeing, onde eu por acaso ia, chorou uma lágrima a ver o nascer do sol sobre o Sahara. O dedo do avião limpou a gota que caía, com vergonha que o céu visse.
6. Já era outro Boeing. Da British Airways, de Londres para Los Angeles. Estava lá em baixo o quase Pólo Norte, a doer de branco, a tiritar de frio e, em aquecimento global, ia ali, deitada a uma cadeira de mim, a Melanie Griffith, loura, num sossego e sono que um Bloody Mary embalara. Quando chegámos, os cães detectives snifaram-lhe coisas na mala. Os fiscais puxaram os cães para trás: “É a Melanie Griifth, disseram”, cheios de respeito e distância. E eu tenho a certeza de que – vinha ela de Espanha, de casa do Banderas – na mala eram só chorizos e manchegos, mimos e amuse-bouche andaluzes.
7. Foi em 1967, julgo. O adolescente que eu era estava na pista do aeroporto de Luanda – nesse tempo ainda se podia ir à pista – e o avião de Lisboa trazia o Benfica. Na noite tropical de Luanda, um bruto capacete de humidade em cima, descendo a escada do avião, emergiram os astros: primeiro o senhor Otto Glória, depois o senhor Coluna, o senhor José Augusto e, logo, os miúdos Eusébio e Simões. E eu na pista, a ter agora a certeza de que, se há estrelas no céu, podem sempre descer à terra. O que não sabia é que as estrelas cheiravam. Antes de aterrarem, tinham ido todos perfumar-se. O aeroporto de Luanda rescendia a Guerlain, Aramis, Opium e Azzaro. Cheirava bem, cheirava a Benfica.
8. Foi um estalo. O estalo do mundo a partir-se. Lembro-me desse dia, de 1975, desse começo de tarde, em Luanda, quando um Mig, sou capaz de jurar que mesmo por cima da Vila Alice, rompeu a barreira do som. Um estalo supersónico e, uau, os ouvidos rotos de infinito. Como se andassem bisontes no ar, foi o estampido do céu e toda a gente a gritar em terra: “A vitória é certa!”"